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  • Foto do escritorFilipe Starling

A ideologia do amor romântico



A capacidade de amar é universal no ser humano, mas a forma como isso se manifesta – o comportamento amoroso não ocorre da mesma maneira em todas as sociedades e variou muito ao longo da história. Durante o Iluminismo, por exemplo, o amor foi vinculado ao ridículo, por afastar o homem da razão que o devia guiar. Mesmo nos tempos atuais o amor é vivido de forma diferente de acordo com a cultura... Enquanto no modelo de amor romântico desenvolvido no ocidente tentamos nos sentir inteiros a partir de algo externo a nós - a relação amorosa com outra pessoa - os orientais, ao contrário, se voltam para dentro de si mesmos em busca da completude. Eles desconhecem o amor romântico e se propõem, por conta própria, a amenizar a sensação de falta através de um processo de individuação, numa busca por si mesmo ao invés do outro.


O modelo de amor vigente no mundo ocidental - o modelo do amor romântico - surgiu no período do Romantismo como um contraponto à racionalização excessiva do Iluminismo. Este modelo de amor foi impulsionado pelos filmes de Hollywood e entrou pra valer no casamento a partir de 1940, como analisa o sociólogo Túlio Cunha Rossi em sua pesquisa de doutorado publicada no livro “Uma sociologia do amor romântico no cinema”. Neste livro, o autor revela como o cinema constrói regras de sentimento, normas que são compartilhadas socialmente e que dirigem a maneira pela qual nós devemos ou deveríamos sentir as emoções, em particular, o amor.


Uma das características deste modelo de amor romântico tão propagado pela indústria cultural de Hollywood é que nele a derivação de todas as necessidades do indivíduo passa a vir do casamento. Como explica Esther Perel em seu livro “Sexo no cativeiro: Como manter a paixão nos relacionamentos”: Matrimônio era uma instituição econômica em que havia uma parceria por toda a vida em relação aos filhos, status social, sucessão e companhia. Hoje em dia queremos que nosso parceiro continue a nos dar tudo isso e, além disso, quero que seja meu melhor amigo, meu confidente e meu amante apaixonado, sem contar que vivemos o dobro do tempo. Então nós basicamente pedimos a uma pessoa que nos dê o que antes um vilarejo inteiro nos fornecia. Dê-me merecimento, identidade, continuidade, mas também transcendência, mistério e admiração, tudo junto. Dê-me conforto e limite. Dê-me novidade e familiaridade. Dê-me previsibilidade e surpresa.


A psicanalista Regina Navarro descreve a ideologia do amor romântico que rege os relacionamentos no ocidente da seguinte forma: O amor romântico apresenta atitudes e ideais próprios. Contém o conceito de que duas pessoas se transformam numa única, havendo complementação total entre elas, sem nada lhes faltar. E abarca ainda outas expectativas, que na prática não são realistas: a de que quem ama não sente desejo sexual por mais ninguém, de que o amado é a única fonte de interesse do outro e que não é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo.


É justamente por isso que a exclusividade sexual é tão importante neste modelo do amor romântico, porque ela confirma que o outro pode satisfazer todas as nossas necessidades, não sendo necessário mais ninguém de fora. E quando alguém demonstra interesse por outro, isso abala os alicerces dessa idealização, pois implica que o parceiro ou a parceira não são tudo na vida um do outro.


Neste contexto, quando nos pegamos atraídos por outras pessoas, sentimo-nos culpados porque entendemos que não deveríamos estar sentindo aquilo. Alguns vão negar o desejo e acabar alimentando um ressentimento por negarem algo que era importante para si. Já outros vão para o lado da indulgência, cedendo ao impulso pela via da traição; enquanto outros vão terminar o relacionamento e iniciar um novo, levando ao que se convencionou chamar de monogamia serial.


Uma estratégia alternativa seria conversar abertamente sobre a questão, enfrentar os medos e o julgamento dos outros e reconhecer que uma só pessoa não é, nem deveria ser capaz de satisfazer todas as nossas necessidades emocionais e sexuais. A partir dessa aceitação pode-se optar, de uma forma ética e responsável, por abrir espaço na relação para buscar a satisfação de algumas necessidades com pessoas de fora, seja individualmente ou em conjunto com o parceiro, levando ao modelo que chamamos de não-monogamia responsável, onde existe abertura consensual na relação para satisfação de algumas necessidades e desejos com outras pessoas que não o parceiro.


Olhando de fora, pode parecer que esses casais estão abrindo mão da segurança da monogamia, mas isso não é necessariamente verdade. Em primeiro lugar porque sabemos que a traição é uma das coisas mais comuns nos relacionamentos ditos monogâmicos. Em segundo lugar porque quando deixamos o outro livre, passamos a entender que ele está com a gente porque está a fim e não porque está sendo obrigado. Afinal de contas, de que adianta a pessoa ficar só comigo apenas porque está proibida de ficar com outras pessoas? Ou como expressou poeticamente Richard Bach: “Se você ama alguém, deixe-o livre. Se ele voltar, é seu. Se não, nunca foi”.


O problema da ideologia do amor romântico é que é um amor idealizado e toda idealização acaba gerando sofrimento em algum momento... Além disso, essa ideologia acaba contribuindo para um enfraquecimento das individualidades na medida em que estimula que um não viva sem o outro, que sejamos apenas metades procurando nossa contrapartida, etc. O que é estimulado nesse modelo de relacionamento é justamente a dependência emocional e não a intimidade saudável. A dependência emocional entre um casal é encarada por todos com naturalidade porque se confunde com amor e é reforçada pelo modelo do amor romântico que pressupõe que um vai satisfazer todas as necessidades do outro. Isso favorece com que reeditemos experiências muito primitivas da infância, quando dependíamos totalmente da mãe para sobrevivermos, como explica a psicanalista Regina Navarro.

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